Família para quem precisa
Adoção e HIV:
Assuntos que devem ser debatidos nos dias de hoje
Adoção, para todos que vêem de fora, é um processo longo, muitas vezes árduo e que
exige resiliência. Porém, algumas histórias adotivas fogem do roteiro tradicional, e é
isso que eu vim compartilhar sobre a minha história, que apesar de diferente deveria
ser o padrão.
Cheguei em casa com um pouquinho mais de um ano, não me lembro de nada
conscientemente. Meus pais dizem que foi uma festa, pois estavam esperando mais
um filho depois que meu irmão havia chegado. Descobriram que eu adorava comer e
falar “tui tui”. Logo depois, meu outro irmão chegou para completar o trio adotivo do
núcleo familiar. Minhas primeiras lembranças sempre foram brincando com eles, fosse
na piscina, fosse com os nossos cachorros.
Sempre me perguntam quando me contaram que eu fui adotada e essa é uma pergunta
que, creio eu, continuará sem resposta. Na minha percepção eu sempre soube, e mais do
que isso, sempre soube que isso era um fator secundário da minha vida, portanto nunca
entendi a importância dada por algumas pessoas ao tema. Mais tarde, durante a minha
adolescência comecei a entender um pouco mais esse desejo, mas nunca o tive em mim,
não completamente. A única curiosidade que guardo dos meus progenitores biológicos
é sobre os meus outros irmãos biológicos e sobre a minha doença.
Costumam não fazer tantas perguntas sobre a minha condição de saúde. Constrangimento,
talvez. Mas os olhares, esses são inevitáveis e por vezes indiscretos demais, pressupondo
saber de toda minha vida por conta de uma doença. O HIV me fez perceber desde
cedo que eu era diferente tanto das pessoas que não o tinham quanto das pessoas que
tinham a AIDS. De três em três meses exames rotineiros, sem erros, todo suporte afetivo
familiar e financeiro para lidar com uma doença que tem a crueldade de afetar de forma
intensa as pessoas desinformadas de sua condição e as pessoas sem acesso a rede à
pública do SUS.
As ocasiões em que eu penso sobre o HIV provavelmente são os raros momentos em que
eu penso em meus progenitores. Acredito que seja melhor guardar esses pensamentos
para mim, por vezes estamos perto demais da realidade para que possamos fazer uma
análise racional da questão.
Recentemente me foi passada a informação que depois de dezessete anos de existência
eu teria que tomar medicação contra o HIV. Apesar de ter capacidade de pensar sobre
esse assunto racionalmente ainda hoje é difícil emocionalmente lidar com a lembrança
diária da limitação que o remédio me traz. Não é minha intenção aqui advogar pela maior
ou menor dificuldade de lidar com essa doença do que com outras, apenas assinalar que
lidar com o HIV exige do paciente uma estrutura emotiva extremamente forte.
Momentos de dificuldade além desses são raros, porém é importante ressaltar que,
apesar de todo apoio familiar, ainda existem pessoas que, fora desse círculo, podem ser
desagradáveis. Diante disso, ressalto novamente o apoio que tenho dentro de casa e a
naturalidade da minha convivência com meus pais e meus irmãos.
O processo adaptativo que me foi apresentado desde a infância sobre o assunto adoção
e HIV me moldou a ser uma pessoa que têm consciência que esses dois fatores fazem
parte da minha existência e sempre irão fazer, mas mais importante que isso é o fato
de que não sou reduzida a essas duas características. Sou primariamente Maria Estela
Martinho Kieling uma pessoa que tem apoio e carinho familiar e que têm ambições,
mas também sou Maria Estela Martinho Kieling, a pessoa que passou por um processo
adotivo e tem HIV.
Ambas faces fazem parte do meu ser com a mesma naturalidade e, saber trabalhar com
as minhas limitações e a minha história me fez a pessoa que sou hoje, consciente de
mim como um ser humano que mereceu e merece, como todas as pessoas do mundo,
afeto e cuidados.
Finalizando, é de extrema importância para mim ressaltar dois fatores em pleno 2018.
Primeiramente, que ainda existem transmissões verticais e em segundo lugar, mas
não menos importante, os casos de crianças que foram adotadas e posteriormente
devolvidas ainda são alarmantes. Não cabe a mim julgar casos individuais, porém cabe
a mim, como membro da sociedade, ressaltar esses traços que no imaginário social
ficaram no século XX, mas que acontecem ainda hoje.
Maria Estela Martinho KIeling